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Review: Lorde conversa com o passado em “Solar Power” e encontra equilíbrio longe da fama

De quatro em quatro anos, algo muito esperado acontece para a felicidade dos fãs do pop alternativo: Lorde lança um álbum. Aconteceu em 2013, com o “Pure Heroine”, em 2017, com o “Melodrama”, e, agora com o “Solar Power”. O aguardado álbum chegou nesta sexta, 20, cheio de surpresas e trazendo um diferente lado da cantora que não conhecíamos.

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Para início de conversa, é um álbum descontraído ao mesmo tempo que complexo. Com melodias com muito uso de guitarras e violões, para além de flauta, percussão e até mesmo saxofone, se opõe a complexidade de produções do “Melodrama”, em que muitos sintetizadores eram usados. Tais misturas de instrumentos vezes lembram o pop do final dos anos 90 e início de 2000 (um pop mais verão como Natasha Bedingfield e Natalie Imbruglia faziam), vezes a psicodelia dos anos 60 e 70. Ao mesmo tempo, as temáticas das letras são complexas, falando de mudanças de estilo de vida, responsabilidade afetiva, crescer ainda mais, entre muitas outras coisas. Tudo isso, com metáforas a elementos e processos da natureza.

“Solar Power” é um álbum de difícil identificação

Comparar os últimos álbuns com esse é algo muito injusto a se fazer, por se tratarem de temas e objetivos completamente diferentes. Dito pela própria Lorde, nessa nova era ela não se importa sobre as vendas dos álbuns.

Ele foi feito enquanto a cantora estava vivendo isolada de toda a indústria de entretenimento: na Nova Zelândia, com amigos, pegando sol, fazendo caminhadas e vivendo sem as redes sociais. Ser uma pessoa diurna e saudável, estar fora das redes sociais, sem ligar para números, fez Lorde escrever sobre temas familiares se distanciando e colocando sua própria visão de como tudo aquilo era tóxico, mas, como ao mesmo tempo foi bom ter acontecido. É uma nova fase.

É um álbum que foi feito baseado em suas próprias experiências dos últimos 4 anos. Tendo os holofotes virados pra ela desde os seus 16 anos e cada vez mais ampliando sua fanbase (e sua fortuna), era meio óbvio que dessa vez as experiências não fossem bater tanto assim com as nossas, meros mortais.

E é por isso que talvez tanta gente não goste de primeira do “Solar Power”: a experiência que tanto tínhamos antes, de nos identificar com um álbum inteiro, já não acontece mais. Você tem que gostar da música apenas pelo o que ela é e tentar imaginar os cenários que Ella descreve.

Abertura do álbum com “The Path” e teorias

Lorde já abre o álbum dando choque de realidade. Se você precisa de alguém pra te salvar, ela não é essa pessoa. Contrariando a coisa do “Lorde precisa voltar pois estou vivendo uma nova fase” ou “Lorde, volte pra que eu possa criar uma personalidade baseada nas músicas novas”. Basicamente, contrariando tudo que possa envolver esse meme aqui:

A neozelandesa pergunta em “The Path” onde estão os sonhos que tivemos, diz que todos nós estamos tristes e não conseguimos achar eles em lugar nenhum. Inclusive ela. Lorde fala sobre algumas de suas experiências com a fama e parece desapontada. Já começa sendo um vestígio que talvez possamos encontrar o real e o conforto na própria natureza – mais especificamente, no sol.

Conexão com o Brasil?

Uma coisa bem curiosa foi que a cantora disse que essa foi de fato a primeira música escrita do álbum. Junto a isso, em um de seus diários/e-mails enviados, foram compartilhadas notas das primeiras anotações que moldaram o álbum. Uma delas é essa:

“As pessoas estão confiando em você para levar luz à eles em um momento sombrio e que você seja uma condutora de energia e luz. Acredite em você mesma que você é capaz de fazer isso por eles. Você já fez isso antes.”

A nota é de 14 de novembro de 2018, um dia antes de seu show em São Paulo. O show ocorreu poucos dias depois da vitória de Bolsonaro para a presidência, época em que estávamos com medo do que viria. E Ella fez um belo discurso antes de cantar “Liability” referenciando justamente o acontecimento. Seria mera coincidência ou teria de fato inspirado a escrever “The Path”?

“California” e sua mudança de estilo de vida

Para mim, “California” é uma das músicas mais gostosas de se escutar do álbum. Tem um tom leve – tanto nos vocais, quanto na melodia. Parece que Lorde se encontra nesse exato momento e está certa de suas escolhas – confiante como nunca antes.

É a música em que fala que soube que depois que recebeu o Grammy em 2014, sua vida nunca mais seria a mesma. “Once upon a time in Hollywood / When Carole called my name / I stood up, the room exploded, and I Knew that’s it, I’ll never be the same“(Era uma vez em Hollywood, quando Carole chamou meu nome, eu levantei, o lugar “explodiu” e eu soube que era isso, eu nunca mais seria a mesma): Carole é Carole King, quem anunciou na cerimônia que a Lorde era a ganhadora de música do ano com “Royals”.

“California” continua a narrativa de “The Path”. Ao contrário do “Melodrama”, onde Lorde contava experiências de festas, caos e sentimentos confusos, é como se em “California” ela relembrasse sua trajetória, a coisa de crescer no meio de todo o caos e glamour e desse um passo pra trás. Tudo aquilo foi um sonho, um momento da vida e tá na hora de acalmar e voltar pra onde é confortável. E ela já está nesse lugar confortável falando desse lugar tóxico, mas que teve bons momentos. É o contrario de “Sober II”, onde fala sobre a emoção extrema a flor da pele e descreve o final de uma festa caótica.

O dreamy e leve “it was just a dream” no final da música me lembra a sonoridade do último álbum das HAIM e dá a ideia de sentimento temporário – combinando demais com todo o conceito da canção.

“Secrets from a Girl (Who’s Seen It All)” e sua aproximação com o público

“Secrets from a Girl (Who’s Seen It All)” é uma das poucas músicas que é de fácil identificação. É sobre a pressa de querer ser mais velho, e, quando se menos espera, já passaram vários anos; e eles não foram lá tão legais assim: passaram corridos e sendo problemáticos. Mas, em algum momento se chegou em uma maturidade com limites e menos inseguranças. Ella, tendo passado por tudo isso, te garante que em algum momento as coisas vão melhorar e vai dar tudo certo.

A vez que mais prestei atenção na letra dessa música, estava em casa depois de alguns drinks, questionando toda a minha vida, sentindo falta de pessoas do passado e com medo de nunca mais me apaixonar por tudo estar tão corrido e trabalhando tanto. E estar longe de pessoas que me sinto confortável. Escutar da Lorde essas palavras em um momento de reflexões foi extremamente confortante de certa forma. Acredito que para muitos acabe também sendo.

Monólogo da Robyn

De bônus, ainda tem um monólogo de ninguém menos que Robyn. Logo no início, ela diz: “Welcome to Sadness
/ The temperature is unbearable until you face it / Thank you for flying with Strange Airlines, I will be your guide today / Your Emotional Baggage can be picked up at carousel number two / Please be careful, so it doesn’t fall on someone you love(…) You’ll be fine
” (Bem vindo à Tristeza, a temperatura é insuportável até você enfrentá-la. Obrigada por voar com a Strange Airlines, serei sua guia. Sua bagagem emocional pode ser pega na esteira 2. Seja cuidadoso para que ela não caia em cima de alguém que você ama (…) Você vai ficar bem).

Achei bem bonito tratar a tristeza como um lugar, e ela não sendo o destino final. E é sobre isso. Ao enfrentá-la, as coisas tornam-se menos piores e no final quase tudo pode dar certo.

Conexões com o “Pure Heroine” e “Melodrama”

Existem várias conexões no álbum que ligam a Lorde do presente com a Lorde dos últimos álbuns. E essa é uma das coisas mais legais: você percebe o fim de certos momentos ou a continuação. Tem toda uma narrativa desde 2013 se você acompanhou todos os álbuns e é ótimo perceber tudo isso. Os easter eggs. Eles podem ser vistos em “Stoned at The Nail Salon”, “Fallen Fruit”, “Secrets From a Girl (Who’s Seen It All)”, “Oceanic Feeling” e até mesmo em “California”.

“Stoned at the Nail Salon” e o “Melodrama”

Em “Stoned at The Nail Salon”, há conexões com faixas do “Melodrama”. Ela diz em um dos versos em “The Louvre” que “metade de suas roupas estão no chão” da pessoa que se relacionava, enquanto na faixa desse atual álbum diz que “tem a memória de estar na sua cama com apenas os brincos“. A teoria foi confirmada pela própria, dizendo que há essa conexão. Ainda conversa com “Liability”, em que diz que iremos vê-la desaparecer no sol. Já nessa faixa, diz que “todo sol tem que nascer“.

“Fallen Fruit” e sua sonoridade

“Fallen Fruit” não se conecta tanto em letras com músicas antecessoras, mas sua bridge tem algo especial. Ela ser mais acelerada e pausada ao mesmo tempo, lembra muito o que foi feito no “Melodrama” em músicas como “Sober II”.

“Secrets From a Girl (Who’s Seen It All) e “Ribs”

Tive certeza que “Secrets From a Girl (Who’s Seen It All)” era minha favorita quando li no Spotify que a Lorde quis propositalmente conversar com a ideia do medo de crescer em “Ribs”, faixa do “Pure Heroine”, e utilizou dois acordes invertidos dessa faixa para escrever a nova canção. É apenas muito bem pensado e lindo demais.

“Oceanic Feeling”, “California” e “Pure Heroine”

Em “Oceanic Feeling”, Ella diz que seu batom preto está guardado na gaveta e acumulando poeira, uma vez que não precisa mais dele porque agora tem “poder”. O batom preto era marca registrado da era “Pure Heroine”, assim como roupas escuras – o que quase não vemos na era “Solar Power”.

Acho interessante perceber que em “California” ela percebe que a Califórnia não é o ritmo adequado para viver e escolhe se isolar no seu país, Nova Zelândia, e encontra a paz por lá. Enquanto no “Pure Heroine”, tudo que mais parecia querer fazer era ir embora da vida do subúrbio e viver coisas diferentes.

Outras observações

“Fallen Fruit”, pra mim, tem uma composição incrível e é extremamente bem feita. A sua bridge mudar tão rapidamente e dar outro tom à música, a cobrança à geração anterior por não ter se preocupado com o futuro do planeta e serem a causa dele estar como está. Tem também o solo de guitarra: eu costumo odiar solo de guitarra em música, mas nessa dá um ar sombrio e de desesperança que encaixa perfeitamente com o que Lorde quer dizer.

“Oceanic Feeling” é uma faixa de mais de seis minutos que não possui refrão e ao mesmo tempo você quer muito continuar escutando pra saber toda sua história. É sobre um dia de descanso com sua família e que reflete sobre todas suas influências sobre sobre ela e as que teve vindo dela. A melodia é um universo a ser explorado, uma vez que muda diversas vezes e começa a parecer uma nova música. Incrível.

Ainda se tratando de “Oceanic Feeling”, é a última faixa do álbum comum, e, assim como os álbuns antecessores, Lorde utiliza dela para conversar com a primeira música. Nos últimos versos, ela e Marlon Williams conversam sobre a coisa de achar por completo o conforto na natureza e pergunta se a iluminação foi achada. Lorde responde que não, mas que está tentando levar um ano de cada vez.

Faixas extras da versão deluxe

“Solar Power” tem duas músicas extras que não entraram na versão standard do álbum: “Helen of Troy” e “Hold No Grudge”.

“Hold No Grudge” é uma das mais maduras e bonitas de todo o álbum e na minha opinião deveria ter entrado na versão oficial. É uma das únicas que não é acústica e fala sobre um amor passado, sobre memórias e ter perdido o contato com a pessoa por completo. E ela pensa sobre como a relação com a pessoa poderia ser atualmente. Ela pega emprestado do “Melodrama” a coisa da música que dá vontade de dançar mas também de chorar.

O que resultou o “Solar Power” de forma ampla?

A Lorde apenas fez na pandemia tudo que a gente mais queria: esteve ao ar livre, num país que soube lidar bem com toda essa situação e esteve longe de redes sociais. E resultou na quase calmaria do “Solar Power”, que também critica ironicamente a vida acelerada e meio doentia de estar no meio de gente famosa e rica querendo passar boas energias enquanto tem minorias morrendo. No final, tudo isso deve trazer alguma paz e eu só desejo mais ainda depois do “Solar Power” um dia poder não existir online em redes sociais.

Visão geral

“Solar Power” é um álbum completamente diferente do “Pure Heroine” e “Melodrama” e mostra que a Lorde encontrou o equilíbrio de alguma forma na natureza. Ele não é fixo, varia e às vezes ainda bate as bads à la álbuns anteriores. Mas, de forma geral, Lorde se tornou uma adulta que busca a estabilidade. E é sobre isso: a estabilidade é difícil de se identificar, de se alcançar e pode parecer chata.

Sonoramente, isso é refletido no álbum: prevalecem guitarras e violões apesar dos outros novos instrumentos incorporados, podendo ser interpretado de primeira como algo básico demais. Mas conforme você entende o que rolou, que Lorde colocou ali suas vontades, tudo que estava escutando (músicas mais antigas e com vibe psicodelicas) durante esses quatro anos como inspiração e ter majoritariamente se apegado à natureza e causas ambientais como um conforto da vida adulta, o álbum passa a fazer todo o sentido. Ainda mais se você começa a perceber todas essas conexões. E se você aceita que tá tudo bem com a estabilidade. É uma representação de uma vida quase que normal.

É difícil pra que o jovem (eu inclusa nisso) aceite menos que muitas emoções acontecendo, uma história caótica contada para que se possa identificar. Ainda mais no atual momento sendo brasileiro, estando em situação de governo Bolsonaro e no meio de uma pandemia descontrolada. É difícil se acostumar com a ideia de não ter uma adolescente/jovem adulta infeliz com a vida ou só muito perdida falando sobre experiências meio ruins. Acho que é literalmente como a própria Lorde disse: é um álbum que vai crescer nas pessoas com o tempo.

Nota: 9/10

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