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Crítica: “Blonde” é um retrato grotesco e desconfortável de Marilyn Monroe

Lançado pela Netflix, filme abusa de polêmicas e violências da vida da atriz

Foto: Divulgação/Netflix

Entender como uma pessoa se transforma em um ícone não é uma tarefa fácil. E, provavelmente, Marilyn Monroe foi a primeira grande influenciadora e objeto de desejo que a indústria cultural, de fato, emplacou no último século. O pioneirismo e as tragédias de toda essa cobiça são objeto de estudo de “Blonde”, lançado pela Netflix na última quarta-feira (28).

Estrelando Ana de Armas (“Entre Facas e Segredos”) no papel da protagonista, “Blonde” foi dirigido por Andrew Dominik (“O Assassinato de Jesse James”). O roteiro teve como inspiração o livro de mesmo título, escrito por Joyce Carol Oates, lançado em 1999. A proposta das duas obras é servir como um romance biográfico – ou seja, utilizar de fatos da realidade, mas com certos toques imaginados pelos autores.

Sobre o que é o filme “Blonde”, com Ana de Armas?

“Blonde” se propõe a contar uma história pouco explorada: o pior lado possível de Marylin Monroe e toda a mitologia criada ao redor dela. A estrela de Hollywood, que teve sua ascensão entre as décadas de 1950 e 1960, foi uma verdadeira febre nos Estados Unidos, e não demorou muito para atrair a atenção do resto do planeta. 

No entanto, Marilyn é, na verdade, um alter ego de Norma Jeane. E, com isso em mente, o filme explora a dualidade entre essas duas personalidades, que são bastante diferentes. Enquanto Norma é insegura e retraída, Marylin é expansiva, a verdadeira definição de uma pessoa solar. Esse conceito, aliás, é repetido diversas vezes ao longo das quase três horas do enredo: Marilyn Monroe é iluminada, é como o Sol, que você não consegue viver sem.

Porém, para chegar até esse conceito, a vida de Norma Jeane é construída em meio a um verdadeiro inferno. Com uma família desestruturada, ainda muito jovem foi abandonada pelo pai – ponto importantíssimo para se entender sua relação com os homens -, e tinha uma mãe sem condições mentais de cuidá-la. E essa não é a única vez que foi destratada. Em todo momento, a indústria fonográfica faz questão de humilhá-la, como quem come e cospe no prato; um escarro grotesco e desconfortável, para artistas e mulheres, principalmente.

“Blonde” retrata com muita grosseria (essa é a palavra, pois não é nada sutil, e nem pisa em ovos) o que um trauma pode fazer na vida de uma pessoa. Por conta disso, o polêmico filme é um dos raros classificados como +18 pela plataforma de streaming. O título é capaz de despertar inúmeros gatilhos, sem o menor aviso ou qualquer cuidado com o telespectador – talvez, uma devolutiva do que foi feito com Marilyn Monroe no passado; uma invasão extremamente violenta, em todos os sentidos.

Ana de Armas como Marilyn Monroe | Foto: Reprodução/Netflix

Dualidade entre Marilyn e Norma

Ainda que a trama acompanhe uma certa linearidade (ou seja, se esforça para contar a história em ordem cronológica), um olhar pouco atento pode acabar perdendo-se no enredo, com tantas referências do contexto em que a artista vive. 

Isso porque, ao contrário de filmes biográficos mais comuns, “Blonde” abusa de recursos para a imersão na psique da artista, e pouco nas pessoas que passaram por ela: seus ex-maridos, seu affair com o presidente John F. Kennedy, e tantos outros “detalhes” que fizeram a diferença em sua vida. “Blonde” quer forçar o espectador a não focar nesses fatos que coordenaram Marilyn Monroe, mas sim na reação dela ao passar por esses momentos em sua vida.

Um exemplo claro disso é o uso de imagens coloridas e preto e branco que nos auxiliam a entender de quem estamos falando. Quando vemos Norma Jeane em sua infância, seus primeiros passos nos testes de elenco e suas crises emocionais, tudo é muito colorido. Quando o mindset da atriz se dedica à “receber” Marilyn Monroe (porque ela é, sim, tratada como uma entidade quase espiritual por todo mundo que a cerca), há uma transição para o preto e branco. 

É uma visão bem surrealista, como se estivéssemos assistindo uma possessão, e até um exorcismo – afinal, a atriz quer tirar essa sensação de dentro dela, acabar com o seu sofrimento. “Isso tudo é só um sonho”, é o que ela diz repetidas vezes, ao passar por momentos que definiriam o seu trágico final.

Esse recurso, além de imprimir muito da identidade do filme e de quem está tentando retratar, pode acabar pegando bem um espectador desprevenido. É como se víssemos a história ser contada por duas perspectivas, ambas complementares, mas bastante diferentes entre si. 

Marilyn Monroe era como uma válvula de escape para que Norma Jeane pudesse ser quem ela queria ser: uma mulher amada, cuidada, confiante. No entanto, o que ela realmente tinha era um cerco de homens que lhe diziam como ela deveria ser, e ela deveria ser submissa, à serventia deles para qualquer negócio. E qualquer negócio mesmo.

Marilyn Monroe, ícone dos anos 1950 e 1960 | Foto: Reprodução

Caracterização e recepção

Uma das principais características de “Blonde” é o seu acerto no tom e na caracterização dos personagens. Inegavelmente, Ana de Armas como Marilyn Monroe foi um tiro improvável, mas incrivelmente bem dado nessa obra. A atriz incorpora a artista com maestria – quase tão bem quanto a própria Norma Jeane quando a vivia. 

Ana de Armas consegue trazer tudo para que não cause estranheza para quem assiste, nem uma impressão de “forçada”. Não somente pelo cabelo, maquiagem e figurino são impecáveis, mas todo o conjunto de detalhes que compõem a imagem de Marilyn Monroe são retratados muito bem – sua voz doce e quase infantilizada, suas expressões faciais, o cuidado no toque. 

Ana é muito delicada e respeitosa, mesmo com todos os obstáculos voltados para ela: o sotaque, o estilo, a época, a mentalidade. Não à toa, o filme foi aplaudido de pé por mais de 10 minutos durante sua exibição no festival de cinema de Veneza, na Itália.

Entretanto, por toda a sua temática violenta e explicitada, “Blonde” não atingiu as expectativas dos críticos. Por ter uma narrativa tão embasada na hiperssexualização e na intimidade de Marilyn Monroe, o New York Times classificou o filme como “fácil de classificar como trash”, como um gênero no escopo de filmes de terror. 

No Rotten Tomatoes, “Blonde” está com 45% de aprovação, evidentemente dividindo opiniões a respeito da narrativa desse enredo. A maior justificativa é que o filme fala pouco da mulher que Marilyn Monroe foi, e muito sobre a perspectiva que homens tinham sobre ela.

Coincidentemente (ou não), o filme foi todo produzido e pautado majoritariamente por homens. Além da direção e roteiro de Andrew Dominik, Brad Pitt assina a produção executiva junto com Jeremy Kleiner e Scott Robertson. Já na Netflix, essa obra é quase um complemento do documentário “O Mistério de Marylin Monroe”, que aborda sua trágica morte, cogitada como suicídio.

Conclusão

Inegavelmente, o filme não é recomendado para menores de 18 anos… e nem para ninguém, para falar a verdade. Ainda que seja um belíssimo filme quando se fala em fotografia, montagem e todos os adornos citados até aqui, “Blonde” não é um filme que te ajudará a compreender mais sobre a mitologia de Marilyn Monroe, por mais que essa pareça ser a sua proposta inicial.

O filme não é fácil de ser digerido. Assim como Marilyn, o telespectador pode se sentir humilhado e degradado com a quantidade de recriações de abortos, assédios sexuais e violência doméstica retratados nessa história. Existem obras que retratam essas temáticas de forma a não despertar gatilhos na audiência, mas, definitivamente, “Blonde” não é o caso. E, novamente, são quase três horas dessa vivência estarrecedora.

No entanto, se a ideia é entender o pior lado possível de Hollywood, esse pode ser um filme esclarecedor para muita gente. É capaz de gerar debates como a importância de movimentos como o #MeToo, que denunciam esse tipo de experiência vivida pela artista, no entanto, a trama passa tão superficialmente pelas reflexões feitas por ela, que perde o timing de provocar essa sensibilidade em quem assiste. 

Assistir esse filme é quase como ver alguém sendo apedrejado em praça pública. É desconfortável, e ponto final. Mas não deixa nenhum recado como “percebe como não é saudável ter a sua vida e intimidade tão exposta?” ou “as vítimas precisam ser ouvidas”. É apenas um recorte de alguém que teve uma carreira incrível, que foi privada de colher seus próprios louros. Não é nada sexy, nada cativante ou solar como a própria Marilyn Monroe era. Apenas triste.

Nota: 7,5/10

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