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Review: Kendrick Lamar medita sobre as próprias fraquezas em “Mr. Morale & The Big Steppers”

Em seu primeiro disco em cinco anos, rapper reflete sobre paternidade, pressão em torno do sucesso e traumas

kendrick lamar
Foto: Divulgação

Por anos, tem sido assim: quando Kendrick Lamar tem o que dizer, o mundo abre os ouvidos para escutar. Em apenas uma década, o rapper superou o status de mera revelação e se tornou o maior e mais influente nome de sua geração, além de se firmar como uma referência incontestável no hip-hop. Suas rimas reverberam por todos os artistas da indústria, e sua voz é ouvida por todo o mundo com atenção e respeito.

Acostumamo-nos tanto a ouvir Kendrick ter o que dizer que os últimos cinco anos de silêncio foram sentidos em todo o hip-hop — e também pelo próprio rapper. Com uma vida pública discreta, Lamar enfrentou várias crises pessoais e familiares durante seu hiato, e se dedicou para transformá-los em versos enquanto o mundo aguardava para ouvi-lo. “Bloqueio criativo por dois anos, nada me motivava; pedi a Deus para que falasse por mim, é o que você ouve agora: a voz verdadeira de vocês”, apresenta-se em “Worldwide Steppers”.

Lançado na última sexta-feira (13), “Mr. Morale & The Big Steppers” é o álbum mais aguardado da carreira de Kendrick como artista, mas também é um marco pessoal como o pai de Enoch e Uzzi. O disco nos introduz ao lado mais humano do rapper, versando sobre os traumas geracionais de sua família, os desafios da paternidade, a procura por redenção e as responsabilidades que carrega ao se consolidar cada vez mais na história do rap.

O trabalho reafirma o seu talento em desenvolver narrativas e renovar sua mensagem, mas, principalmente, ressalta a grandiosidade de Kendrick ao compartilhar dores muito comuns entre seus fãs, mas pouquíssimo abordadas como em suas novas canções. O rapper conta sobre vivências muito íntimas dos seus entes mais próximos, ao mesmo tempo que revela seus próprios erros e arrependimentos e nos faz refletir a partir deles, construindo uma das experiências mais emocionais que já nos proporcionou em um dos passos mais simbólicos de sua trajetória até aqui.

O disco mais transparente de Kendrick Lamar

Em “United In Grief”, a faixa de abertura do álbum, Kendrick conta o tempo em que esteve fora de cena para o ouvinte: 1855 dias de expectativa para os fãs e de agonias para o rapper. K. Dot sempre nos deu motivos para o ouvirmos falar sobre a sociedade, e durante todo esse tempo, a expectativa em torno de suas rimas cresceram ainda mais em meio a tantas crises pelo mundo. “Mr. Morale & The Big Steppers”, entretanto, conta outra história — e talvez uma de suas mais tocantes. 

Ao invés de contar sobre a sua infância em Compton como em “Good Kid, m.A.A.d. City” (2012), sobre seu crescimento pessoal como em “To Pimp A Butterfly” (2015) ou sobre o seu sucesso como em “DAMN.” (2017), o cantor escancara suas cicatrizes através de outra perspectiva. Em toda a sua carreira, Kendrick apontou os dedos e procurava narrar tudo aquilo que acontecia ao seu redor, mas sem jamais se perder do seu próprio ponto de vista; já em seu novo álbum, o rapper olha para si mesmo da maneira mais transparente, imersiva e sincera possível.

Ao longo do disco, o cantor relata histórias vividas em sua família, tanto sobre os seus pais e tios, por exemplo, quanto dentro de seu casamento. Por vezes, Lamar não teme em expor determinadas situações em seus versos em nome da mensagem que busca transmitir, ainda que isso custe a privacidade que mantém em sua vida íntima — e revele ao público acontecimentos pessoais que ocorreram longe de sua vida pública.

“We Cry Together”, um dos momentos mais marcantes do disco, é um exemplo perfeito. Ao melhor “Estilo Vagabundo”, de MV Bill e Kmila Cdd, Kendrick retrata uma discussão inflamada com a sua mulher, interpretada pela atriz Taylour Paige, em uma faixa extremamente criativa e envolvente. O rapper nos transporta para o mais perto possível dos conflitos dentro de uma relação tóxica e problemática, em uma briga generalizada que envolve supostas traições, discordâncias entre as famílias do casal e, principalmente, muitos xingamentos entre ambos — um cenário marcante para crianças que crescem em um ambiente dividido.

Em outras ocasiões, o cantor conta histórias muito íntimas de sua família para elucidar o seu ponto. Em “Father Time”, Kendrick canta sobre a ausência de seu pai durante o seu crescimento em uma das faixas melhor produzidas do álbum. Na parceria com Sampha, o rapper versa sobre a masculinidade tóxica que é herdada de geração a geração e até mesmo comenta sobre a rixa entre Kanye West e Drake para dizer que “talvez não seja tão maturo quanto pensava”, depois de vê-los fazerem as pazes.

“Auntie Diaries” é outro exemplo em que o rapper envolve seus familiares dentro da narrativa, colocando seu tio como protagonista. Lamar conta, a partir de sua própria perspectiva quando criança, sobre o processo de transição de gênero de seu tio e como demorou para compreender a homofobia e a transfobia com a qual os jovens de Compton viviam. O rapper ainda critica a igreja por tratar transexuais de forma diferente, e finalmente diz entender seu papel “no dia em que escolheu a humanidade ao invés da religião”.

A canção foi uma das mais comentadas pelo público nas redes sociais desde o lançamento do disco, e causou polêmica devido ao uso de xingamentos homofóbicos em suas letras — mesmo tendo sido usados na voz de outros personagens na composição, e não necessariamente refletem o olhar de Kendrick. Porém, trata-se de uma faixa importante por abordar temas tão recorrentes para a comunidade LGBTQIA+ em um meio historicamente recluso como o hip-hop, em uma abordagem direta e provocativa para os seus fãs.

“Mother I Sober”, parceria com a vocalista do Portishead, Beth Gibbons, é uma das músicas mais poderosas já feitas por Lamar, expondo os traumas de sua mãe com abuso sexual no passado. O rapper fala abertamente sobre a sua relação com a mãe de seus filhos, Whitney Alford, anunciando a separação do casal pela primeira vez e também revelando seu vício pessoal em sexo, que o levava a dormir com outras mulheres e, provavelmente, culminou no término. “Whitney se foi; quando você estiver ouvindo essa canção, ela já fez tudo que ela pôde”, nos revela.

Admitindo suas falhas e torcendo para que seus filhos não as herdem, Kendrick mergulha na história para refletir sobre os fardos que famílias negras carregam consigo após séculos de exploração sexual e como eles podem ter impactado sua própria experiência. Ao fim da canção, o rapper procura encerrar o ciclo vicioso de dores em sua família ao relatar essas histórias, para que seus filhos não tenham que viver no mesmo ambiente traumático em que ele cresceu.

Em um só disco, Lamar reúne não apenas os seus traumas, mas também carrega as histórias de sua família consigo como um meio de refletir sobre o passado, o presente e o futuro em sua vida pessoal. Ao mesmo tempo que lidava com a sua enorme influência na música atual e com as expectativas de toda a indústria, o rapper passava por seus conflitos mais íntimos pelos últimos cinco anos, e os descreve por meio do álbum mais reflexivo de sua carreira.

“Mr. Morale & The Big Steppers” pode ser interpretado como uma grande terapia para Kendrick, um tema que é abordado em várias canções. Pela primeira vez, seu trabalho fala tão abertamente sobre os seus sentimentos para o seu público, despindo-se da grandeza que lhe foi imposto desde cedo para expor suas vulnerabilidades como uma maneira de se redimir de seus erros.

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Foto: Divulgação

Como um dos mais influentes artistas da indústria musical hoje, Kendrick também desabafa sobre as responsabilidades que carrega em cada rima. Em “Savior”, o rapper fala sobre si mesmo e sobre nomes como LeBron James, J. Cole e Future, recorrentemente considerados “salvadores” de seus fãs — um fardo que não deveriam carregar pois eles “não são seus salvadores”, assim como ele também não o é.

“Crown” também reitera a mesma ideia, conforme Lamar canta sobre “não conseguir agradar a todos” e desconfia que possa deixar de ser a unanimidade que se tornou. Ironicamente ou não, trata-se de uma das momentos mais crus do disco em uma sequência entre “Count Me Out” e “Silent Hill”, apesar de ter um significado importante para o conjunto da obra e para compreendermos a visão do rapper sobre a sua própria figura.

Uma sonoridade sóbria e complexa

Em nenhum de seus trabalhos, Kendrick repete a fórmula para pensar em sua sonoridade, e “Mr. Morale & The Big Steppers” é mais um exemplo de sua criatividade nesse sentido. A variedade de flows, métricas e sons é um dos grandes destaques do álbum e destaca a inquietação de K. Dot em busca do inédito e do autêntico — um traço que continua muito marcante em cada uma de suas obras.

Musicalmente, trata-se de um disco bastante sóbrio, sem produções muito mirabolantes ou exageradas. Várias canções foram construídas a partir do piano, como “We Cry Together”, “Crown” e “Mother I Sober”, intensificando os momentos mais sensíveis do álbum, ou sobre sonoridades mais sofisticadas, como “Die Hard” ou “Purple Hearts”. Mesmo as faixas mais explosivas são pensadas em uma estética muito própria, com melodias que levam o toque cuidadoso e perfeccionista de Kendrick. 

Tudo é feito na medida certa, o que valoriza ainda mais a produção do álbum. O trabalho é assinado por vários nomes diferentes em cada faixa, incluindo nomes como Sounwave, Pharrell Williams, The Alchemist, pelo próprio Lamar (sob o pseudônimo de Oklama) e até mesmo por seu primo, Baby Keem, que também tem seus versos em “Savior” e em seu interlúdio.

Uma das revelações mais recentes do hip-hop, é possível dizer que Baby Keem foi uma das principais influências do disco, com faixas muito semelhantes ao seu estilo, como o hit pronto “N95”, “Count Me Out” e “Mr. Morale”. Hykeem e Kendrick têm sido inspirações mútuas em relação à música, e o disco deixa claro a história que compartilham para além de “Family Ties”, parceria que lançaram juntos no ano passado e com a qual conquistaram um Grammy.

As demais colaborações do álbum também se destacam por agregarem um novo tom às faixas. Sampha rouba a cena em “Father Time” com um refrão hipnotizante; Blxst e Amanda Reifer dão vida a “Die Hard” com melodias viciantes e promissoras para as paradas; Summer Walker esbanja todo o seu talento em “Purple Hearts”, com direito a um verso especial de Ghostface Killah, do Wu-Tang Clan; além da participação de artistas como Tanna Leone, Sam Dew e, sob várias controvérsias, Kodak Black.

Muitos acreditam que a polêmica participação de Kodak Black, presente em quatro faixas do disco, mas creditado somente em “Silent Hill”, pode ser a forma que Kendrick encontrou de retratar a redenção sobre a qual tanto fala e que outros também podem ter em suas vidas. Certamente, isso poderia ter sido feito de outras maneiras, levando em conta o seu histórico criminal e os vários casos de violência sexual que o rapper foi acusado, e quão pouco seus versos acrescentam ao trabalho.

Em “Savior”, Lamar chega a comparar a si mesmo com Kodak, o que reforça a tese que boa parte dos fãs tem levantado sobre a sua inclusão e como ela faz sentido na narrativa da obra. O rapper também cita figuras como o cantor R. Kelly, condenado pelo tráfico sexual de mulheres e de menores de idade, e Oprah Winfrey, uma das maiores apresentadoras de TV do mundo, em “Mr. Morale” como exemplos de pessoas que foram vítimas de abuso na infância e, possivelmente, podem ter sido afetadas por essas experiências.

kendrick lamar
Foto: Divulgação

A grande mensagem que “Mr. Morale & The Big Steppers” procura transmitir é a influência que os traumas do passado podem ter sobre a vida das pessoas, e como elas podem se perdoar e se recuperarem dos danos e das dores. Em grande parte das faixas, Kendrick divaga sobre como se libertar de seus demônios e seguir em frente — um ciclo que tem fim em “Mother I Sober” e parece ser aceito em “Mirror”, faixa que encerra o projeto.

O rapper pede perdão por não conseguir lidar com a pressão do sucesso, e o ouvimos cantar livre de qualquer rótulo ou expectativa, imerso apenas em sua realidade. “Desculpa por não ter salvado o mundo, meu amigo; eu estava ocupado reconstruindo o meu”, despede-se do público em “Mirror”, reafirmando sua importância para a música justamente ao desabafar sobre a própria fama.

Assim como qualquer uma de suas obras, serão necessários meses para digerir cada rima, e é bem provável que o álbum ganhe novos significados e leituras com o passar do tempo. Porém, o novo disco já pode ser considerado um de seus trabalhos mais corajosos e sinceros, não apenas pelos temas que aborda com tanta sensibilidade, mas por reconhecer a própria contradição, e por consequência, a própria humanidade. Talvez não seja a mesma obra-prima que “Good Kid, m.A.A.d City” ou “To Pimp A Butterfly”, mas é um trabalho que reforça a sua genialidade em encontrar caminhos inéditos para a sua arte e se reconectar consigo mesmo.

“Mr. Morale & The Big Steppers” é uma reflexão introspectiva sobre a vida que as redes não enxergam, a imperfeição que a modernidade não admite e as fraquezas que os números não traduzem. Kendrick Lamar jamais pensou em se tornar uma divindade para o rap, e ao tentar retratar a própria simplicidade, entrega-nos um dos discos mais sagrados do ano.

9 / 10

Melhores momentos: “N95”; “Father Time”; “We Cry Together”; “Mother I Sober”

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