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Detesto funk e irei defendê-lo

Aviso: Este é um texto que aborda o chamado funk carioca sob uma análise estritamente musical. Se você deseja ou espera um texto que aborde o termo sob uma ótica cultural e que tenha um viés social, recomendo este ótimo texto do jornal Nexo.

Eu detesto funk carioca. Sempre detestei. Ao longo dos últimos 26 anos da minha vida, pude experimentar e apreciar muitos estilos musicais, de origens e propostas diferentes. O funk é, para mim, o pior deles. A ausência gritante de qualidade ali identificada, seja no aspecto musical ou lírico, justifica o título. É algo palpérrimo. Dos três pilares que compõem a música – harmonia, melodia e ritmo –, o que convencionou-se chamar de funk deixa a desejar em todos. Dos três aspectos que, em música, formam um artista – o aspecto artístico, o aspecto musical e o aspecto lírico -, o funk não é um primor em nenhum deles. Para fazer funk, não é necessário cantar bem ou compor bem ou escrever bem. É algo que ajuda, mas não é pré-requisito. A própria denominação “funk” é um ataque gratuito a artistas como Aretha Franklin, Sly and the Family Stone, Parlament, Funkadelic, Stanley Clarke, Bootsy Collins e à galera da Motown, só pra citar alguns dos gênios que fizeram a história do termo que designa o irmão mais descolado da soul music.

Pois bem. Posto isso e lembrando que esta leitura é estritamente musical (já que o funk é, sim, um movimento cultural e social que tem sua importância nas comunidades Brasil afora), quero dizer o seguinte:

Eu detesto funk e irei defendê-lo.

Ao longo da história da música brasileira, um dos fenômenos mais comuns e sem sentido que pudemos observar foi a tentativa de deslegitimar estilos de música jovem. Aqui na terra da passeata contra a guitarra elétrica (um dos eventos mais ridículos que se pode imaginar, como o próprio nome ilustra), sempre se tentou, de alguma forma, atribuir um caráter nocivo ao que os jovens dançam. Pode parecer engraçado agora, em 2017, uma coisa dessas. Porém, aconteceu e está acontecendo novamente.

Não foi apenas a passeata. À luz da história podemos ver que diferentes grupos – sempre sob o pretexto de defesa da moralidade – já atacaram outros estilos. O samba – não por coincidência um estilo popular e vindo da camada mais pobre da população – também foi alvo desse tipo de ataque, sob justificativas bastante similares. Não foi, também, apenas no Brasil que esse tipo de evento veio à tona. Nos Estados Unidos, berço da indústria da música como a conhecemos, o rock and roll foi, em diversas ocasiões, atacado da mesma maneira, culminando com a formação do PMRC, uma comissão de pais idealizada por esposas de senadores e liderada por Tipper Gore, esposa do então senador Al Gore. Essa palhaçada acabou conquistando o famoso selo que adverte quanto ao conteúdo das letras e que acabou virando mesmo foi uma bonita estampa de camisetas. Antes disso, o Blues e até o jazz, que hoje é símbolo de alta cultura e sofisticação, também passaram por perseguições e linchamentos verbais.

Só que o que acontece aqui e agora, no Brasil do século XXI, tem um quê muito especial. Existem pessoas não apenas lutando contra o consumo de um determinado tipo de música, mas pedindo formalmente a criminalização do estilo.

Um grande grupo de lunáticos – acho que essa é a denominação mais precisa e também a mais publicável para que eu me refira à essas pessoas – conseguiu tempo e articulação suficientes para, através de uma petição on-line gerar um projeto de lei que pode culminar com a criminalização do funk. A proposta é de um empresário paulistano (que não citarei o nome porque não vou dar publicidade gratuita). Inscrita como sugestão legislativa no portal e-cidadania, a proposta conseguiu as vinte mil assinaturas necessárias para que virasse uma sugestão legislativa a ser votada no Senado Federal. Em uma clara demonstração de efeito colateral da democracia, a histeria coletiva de um grupo articulado pode, caso o projeto seja aprovado, impactar a vida de um número imensamente superior de pessoas.
Isso configura um retrocesso e um absurdo.

Primeiro porque existe, no funk, uma cadeia produtiva, estruturada e profissionalizada que depende de uma fanbase que é muito presente e que consome essa música diariamente. O maior canal de música do Youtube brasileiro é, veja só, um canal de Funk. O Kondzilla tem, hoje, mais de 14 milhões e 800 mil inscritos. Isso, trocando em miúdos, significa que 7% da população brasileira se inscreveu no canal. É algo gigantesco. Famílias inteiras vivem hoje do Funk e encontraram no estilo uma possibilidade de viver digna e honestamente. Mas isso, a proposta desconsidera.

O segundo ponto que precisamos discutir, é que a história da música brasileira é contrária a isso. Na primeira metade do século, grupos precisaram se esquivar das autoridades para, por exemplo, fazer samba. Durante a ditadura militar, existiu o Departamento de Censura Nacional, um órgão governamental que recebia as letras das músicas a serem lançadas, as lia e, então, de forma totalmente monocrática, decidia se elas eram passíveis de execução pública ou de publicação. Os letristas precisavam fazer malabarismos para debochar desse sistema sem que ele percebesse. Pessoas foram mandadas ao exílio por conta do que escreviam. O álbum “Viva”, do Camisa de Vênus, foi censurado quase em sua totalidade: teve oito das dez faixas censuradas após ser recolhido pela Polícia Federal por, mesmo após o fim da ditadura, não ter sido enviado ao DCN.

O próprio processo de redemocratização no Brasil teve muito disso: da luta por liberdade de expressão. E agora, um grupo de vinte mil pessoas encabeçado por um empresário julga que pode censurar um estilo inteiro, sob alegação de que “o funk é uma vergonha para a sociedade brasileira”.

É inadmissível. Não podemos, hoje, em 2017, tolerar que um grupo unido em nome do que chamam de moralidade e universalizando seus valores ofereçam perigo à liberdade de expressão que a música brasileira conquistou a duras penas. Também há de se criticar, aqui, a apatia e a omissão dos artistas que precisaram sobreviver à ditadura e, diante disso, não se manifestam diante do risco – iminente, ainda que remoto – de terem lâminas apontadas às suas letras. Anitta parece ter sido uma das poucas com a atitude esperada de vir a público e posicionar-se sobre o assunto: “O funk gera trabalho, gera renda.. pra tanta gente… uma visitinha nas áreas menos nobres do nosso país e vocês descobririam isso rápido”, disse a cantora.

Não importa que você, ou eu, o a tradicional família brasileira não goste de funk. Melhor seria se nossa estrutura educacional e midiática oferecesse acesso a diversos estilos de música para que as pessoas pudessem, então, escolherem o que preferem. Porém, criminalizar um estilo de música – qualquer que seja ele – é um atentado em todos os níveis possíveis e imagináveis. Uma gama enorme de artistas, muitos deles admirados pelos que hoje assinam a petição, lutou muito e pagou caro para que a censura deixasse de existir. Agora, pessoas que nem vivem e nem se importam com a música têm a mão na chave da ignição do retrocesso.

Por isso irei defender o funk nesse embate. Porque nenhum estilo pode ser banido. Nenhum autor pode ser calado. Milhões de fãs não podem ser privados do conteúdo que consomem por conta da opinião de um grupo restrito. Não importa se você é fã de rock, pop, jazz, MPB, heavy metal, blues, cumbia ou Despacito. O que está acontecendo agora, diante dos nossos olhos, é um atentado gravíssimo à música e à democracia.
PS 1: Enquanto este texto é escrito, foram 21.938 apoios a esta besteira abismal.

PS 2: O texto reflete a opinião do colunista e não está, necessariamente, alinhada total ou parcialmente com o editorial do Tracklist.

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