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Manifesto de trabalhadores da Cinemateca alertava riscos de incêndio; leia

Triste dia para a cultura brasileira. No final da tarde desta quinta-feira (29), um incêndio atingiu galpão da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, localizado na Vila Leopoldina, Zona Oeste da cidade. As chamas não atingiram a sede da instituição, que fica localizada na Vila Mariana, Zona Sul da capital paulista. Em todo caso, um manifesto publicado em abril deste ano por trabalhadores da Cinemateca já alertava os riscos que o local corre.

No galpão atingido pelas chamas nesta quinta, é guardado parte do acervo da Cinemateca Brasileira. Em entrevista à TV Globo, a diretora-executiva da Sociedade Amigos da Cinemateca, Maria Dora Mourão, afirmou que o galpão era o único em uso dentre o conjunto de galpões da instituição.

Segundo o Corpo de Bombeiros, em entrevista à Globo News, a causa do incêndio seria uma manutenção no ar condicionado. Ainda para a emissora, o diretor da Defesa Civil de São Paulo, Robson da Silva Berolotto, confirmou que não houve vítimas e que o fogo já está controlado.

Infelizmente, esse não é o único caso de tragédias no local. Em 2020, uma enchente alagou o galpão e comprometeu parte do acervo. Já em 2016, outro galpão da instituição, ao lado da sede na Vila Mariana, foi atingido por um incêndio que danificou cerca de 500 obras.

Foto: Reprodução/Twitter/@metropoles

Um manifesto publicado em abril deste ano pelos trabalhadores da Cinemateca expõe os riscos que correm na edificação e relembra outros incêndios que já ocorreram no local. “A instituição enfrentou quatro incêndios em seus 74 anos, sendo o último em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras. O risco de um novo incêndio é real”, diz trecho da carta, que pode ser lida na íntegra a seguir.

Leia manifesto de trabalhadores da Cinemateca Brasileira, publicado em abril de 2021

Manifesto dos trabalhadores da Cinemateca Brasileira

A Cinemateca Brasileira segue fechada desde agosto de 2020, quando representantes do Ministério do Turismo retomaram as chaves da Organização Social que a geria. Desde então, não há corpo técnico contratado, o acervo segue desacompanhado e não há qualquer informação sobre suas condições. Por esse motivo, lançamos um alerta acerca dos riscos que correm o acervo, os equipamentos, as bases de dados e a edificação da instituição.

A possibilidade de autocombustão das películas em nitrato de celulose, e o consequente risco de incêndio frequentemente recebem mais atenção da mídia e do público. A instituição enfrentou quatro incêndios em seus 74 anos, sendo o último em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras. O risco de um novo incêndio é real. O acompanhamento técnico contínuo é a principal forma de prevenção. A situação do acervo em acetato de celulose também é crítica. O conjunto está estimado em torno de 240 mil rolos, e corresponde à maior parte do
acervo audiovisual da Cinemateca Brasileira. Tal acervo demanda temperatura e umidade constantes e, na falta de tais condições, sofre aceleração drástica de seu processo de deterioração. O acompanhamento técnico e as demais ações de preservação, inclusive processamento em laboratório, também são vitais.

Nos últimos meses tem chovido fortemente na região, o que pode provocar interrupção de energia. Não há como saber se existe gerador em funcionamento e se os sistemas de climatização funcionam. Quando a equipe técnica ainda estava atuante, eram frequentes ocorrências de alterações no sistema, de modo que eram necessários ajustes nos equipamentos. As chuvas também consistem em forte ameaça a uma parcela do acervo, sobretudo a documentação em papel, o acervo fotográfico, de vídeo analógico e digital. As infiltrações previamente conhecidas podem ter se alastrado, sem a limpeza de calhas e o devido acompanhamento da equipe. Em anos recentes, ameaças ao acervo foram sumariamente sanadas pela atuação rápida da equipe, como o advento de uma disseminação súbita de fungos, a presença de roedores, as infiltrações, os vazamentos, os problemas nos equipamentos climáticos e a autocombustão de um rolo de nitrato destinado ao descarte. A enchente de fevereiro de 2020 é um exemplo trágico dessas ameaças e do imperativo da existência de uma equipe pronta a agir.

Nesse cenário, também apresenta-se a questão do Laboratório de Imagem e Som, um dos mais completos laboratórios de audiovisual do mundo, com maquinário especializado para processamento fotoquímico e digitalização de películas e diversos formatos de vídeo analógico. Há 10 anos chegou a ser considerado pela Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF) o terceiro laboratório mais produtivo mundialmente – atrás de duas instituições de referência nos Estados Unidos. A manutenção do maquinário é complexa, pois reúne equipamentos históricos e tecnologia de ponta, demandando equipe altamente especializada, cuja ausência acarreta comprometimento e perda de equipamentos muitas vezes insubstituíveis. A paralisia atual tem como consequência a perda de décadas de trabalhos minuciosos e vultosos recursos públicos investidos.

Para além da conservação de seu acervo físico, a Cinemateca Brasileira promove a pesquisa e a difusão do audiovisual no Brasil. A partir de transmissões online e do Banco de Conteúdos Culturais (BCC), parte do acervo estava disponível à sociedade. Com o processamento das obras do Depósito Legal e a prospecção e catalogação da produção audiovisual na base Filmografia Brasileira (FB) foi possível manter o mapeamento histórico de uma importante parcela do patrimônio audiovisual brasileiro contemporâneo da nossa atividade audiovisual. O BCC está fora do ar desde outubro de 2020, devido à carência de cuidados básicos com o data-center e outros repositórios de dados alocados no parque da própria Cinemateca; e seguem acumulando informações não processadas de Depósito Legal, colocando em risco esse procedimento censitário tão raro em outros países.

O cumprimento da missão social da instituição é impossível na atual situação de abandono em que se encontra, sem o importante trabalho de difusão que fomenta uma cadeia de pesquisa, exibição e produção audiovisual. Hoje, após quase oito meses sem treinamento das equipes de limpeza, segurança e bombeiros, sem técnicos especializados para acompanhamento do acervo, vivemos uma tragédia: a morte silenciosa de milhares de documentos únicos, filmes domésticos, cinejornais, telejornais, obras do cinema e da televisão. Tememos pela morte da memória social, histórica, cultural, cinematográfica e audiovisual brasileiras. A Cinemateca Brasileira é uma instituição complexa, que demanda constância de recursos e atuação de sua equipe técnica especializada. Perante o quadro atual, pleiteamos o imediato retorno dos trabalhadores a seus respectivos postos de trabalho, cuja experiência é crucial para a recuperação da instituição.

Diante deste quadro preocupante, solicitamos esclarecimentos à Secretaria Nacional do Audiovisual (SAv) sobre a efetivação do plano emergencial, anunciado pelo secretário especial de Cultura Mário Frias em dezembro de 2020. Reivindicamos ainda o pronto lançamento do edital prometido desde julho de 2020 para seleção da nova Organização Social responsável pela gestão da Cinemateca Brasileira, assim como a garantia dos recursos
necessários para dirimir problemas decorrentes da suspensão dos trabalhos, para o pleno funcionamento da instituição e para a construção de uma solução perene para a instituição.

Aproveitamos para agradecer o apoio da cadeia do audiovisual e de todas as pessoas, organizações, movimentos, e instituições brasileiras e internacionais que seguem conosco.

Sem trabalhadores não se preservam acervos.

Trabalhadores da Cinemateca Brasileira
São Paulo, 12 de abril de 2021


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